[ VIDE Na espera]
“A vontade é de pegar qualquer um
desses ônibus que tiveram o privilégio de sair no horário. Esse! Rio Preto?
Não, também não é pra tanto.”
Duas horas de espera para quem
toma tarja preta em função de ansiedade é realmente uma tortura. Era o segundo
maço que ela abria naquela semana. Falando assim a um fumante assíduo parece
até piada, mas, para ela que usava o hábito apenas como charme boêmio –
imprescindível para quem se julga escritor – um maço não pode atrever-se a
durar menos de uma semana. Até porque o preço do charme não era pago apenas com
sua pouca saúde.
“Por que essa agonia em querer
estar sempre indo? Afinal, não me importo pra onde?” Deu um trago profundo.
Olhou para o ônibus que estava saindo, uma mulher com os ombros caídos, olhar
de quem nada procura, fitava-a com uma sutil curiosidade disfarçada. A
escritora esboçou um sorriso interior, adorava poder oferecer seu charme a
olhos curiosos, tudo parecia bem menos inútil.
“Por um segundo quase não
importou mesmo!” Continuou seu pensamento como se ele também pudesse ser
observado pela moça triste que partia lentamente no seu ônibus pontual. E o
ritual foi automático: abrir a bolsa em busca do bloquinho das inspirações fora
de hora. O engraçado é que abrir o bloquinho já era em si um grande obstáculo.
Ela sempre atava os olhos e o pensamento nas inspirações passadas desenhadas
nas primeiras páginas. Era um vício muito mais autêntico que o cigarro. Quantas
vezes não se esvaneceu o pensamento que fê-la abrir o bloquinho antes que
chegasse na próxima página em branco...!
“Eis: o túmulo dos meus
pensamentos, é aqui que os deito para não mais me atormentarem. Ficam aqui
nessas folhas outrora brancas para que, por vezes, possa contemplá-los, mas,
nunca mais vivê-los em mim.” Era a última inscrição. “Quem dera fosse verdade.
Me livraria dos meus demônios todos. Isso sim é uma grande mentira!” Pensou em
voz quase alta. “Roberto – o psiquiatra – achou a teoria um progresso emocional
da minha parte: tão charlatão quanto eu!”
Enfim a página em branco. Foi em
busca da caneta dessa vez. Uma caneta tinteiro! Em pleno século XXI, só quem
rende a própria saúde em nome de uma imagem melhor de si mesmo, abriria mão da
praticidade que as canetas esferográficas oferecem para, em meio a vida
moderna, sacar da bolsa uma imagem tão deslocada no tempo: uma caneta tinteiro.
Combinava com ela, isso era um fato. Ela acreditava que isso poderia dar mais
valor as palavras. E talvez, porque ela acreditasse tanto, assim realmente o
fosse. Abriu a caneta e como sempre, talvez culpa da má qualidade do objeto,
teve que limpar o excesso de tinta do bico. “Ainda bem que não secou, senão não
daria para escrever agora.” Esfregou as pontas dos dedos manchados no banco
para não sujar as páginas em branco. Mas, antes de escrever qualquer palavra,
contemplou seus dedos enegrecidos. Olhava imaginando o quanto dela e de seu
ofício havia aquela imagem. “E quantos enxergam isso?”
Ergueu de súbito os olhos à
janela da mulher dos ombros baixos, mas, o ônibus já havia partido, talvez há
muito tempo. Que sentimento era aquele? “De qualquer forma, que seja!” Ela já
havia perdido, mais uma vez, a inspiração que a fizeram abrir o bloquinho.
Guardou tudo na bolsa e pegou o cigarro dentro na cigarreira de alumínio.
Hesitou. “Já estou farta dessa imagem.” Fechou a bolsa com tudo seguro lá
dentro, suas coisas ultrapassadas pelo tempo. Cruzou as pernas e pousou os
dedos negros no joelho esperando com sua ansiedade invisível seu ônibus chegar.
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