sábado, 29 de setembro de 2012

Pode ser verdade, por contar


“ Deus criou todo o mundo, mas a Holanda foi criada pelos holandeses. “ (Desconheço o autor)

Ouvi dizer que era uma terra coberta por água, tomada pelo mar. Mas os seres humanos que cá vivem Decidiram viver aqui. Transportaram a água e tomaram seu lugar. Domaram-na e também por ela foram domados até descobrirem que o respeito é a melhor forma de se relacionar.
Prometeram-me flores, mas vi poucas. Tudo bem. A história me encantou. Aqui se dizem um povo livre. Acredito porque me dizem, e talvez o sejam por dizer. Dar-me-ei ao luxo de contar uma história que talvez seja verdade apenas porque a conto:

Haviam dito que nos seriam apresentados os frutos proibidos, no outro mundo. Ainda não tenho certeza se criei expectativa. Conheceríamos as drogas e as putas da Holanda. “Drogas” me parece um termo hipócrita, mas “puta” parecia-me, pelo menos até hoje, bem acertado.
O caminho era longo. Outras belezas se espalhavam por esse país encantadoramente estranho. Muita gente. O que em sinceridade não me agrada. Alguns passavam habitualmente, outros fingiam encantos, ou se encantavam mesmo, não me preocupei em lhes observar a autenticidade. Eu procurava flores. Prometeram-me que elas cresciam aos montes, belas e livres. Não sei se foi mentira ou ilusão alheia, mas eu tive que me esforçar na procura.
Meu corpo já estava cansado, se eu resguardava expectativas elas com certeza me escorregaram dos bolsos. Já estava andando com os olhos baixos. E observando minha expressão corporal, acredito que o universo teve compaixão. Encontrei a flor, em artigo determinado, pois sei que era aquela que no fundo eu esperava encontrar entre milhares. As milhares não vieram, mas ela foi fiel. Jogada no asfalto cotidiano. Não sei de onde veio. Se caiu de um cesto, se cresceu ali e se quebrou ou se caiu do céu. Sei que estava lá. Linda. Viva. Vermelha. Livre. Desviando sem esforço todos os passos desinteressados, mantendo-se viva. Mas, observei uma possível incoerência, pois a ela eu concedi toda a minha atenção. Assim como eu com meus olhos baixos de cansaço ela deixava escapar de si uma tristeza involuntária. Talvez por ser demasiadamente livre e, portanto, solitária.

Tomei uma corajosa decisão. Parar no meio da rua que passava com pressa e fazer do ser daquela flor ruborosamente viva um breve estar: a colhi! Nos abraçamos como dois queridos reencontrados. Quando me dei conta eu estava diante das drogas e das putas.
A rua era comprida, dividida por um canal como é por toda parte aqui. Tudo muito amontoado: cores, cheiros, sons e até as vontades. Parecia que todos ao mesmo tempo buscavam a liberdade esguia naquele asfalto cru. De minha parte, não me senti mais livre nem menos também. As putas ficavam dispostas em vitrines, exibindo seu produto, à espera de um desejo que se desamontoasse e a viesse convidar. Havia poucas, quase nenhuma, puta. Vitrines eu vi aos montes, porém vazias, pedindo aos meus olhos um significado.
Dei aos meus passos o consentimento para seguirem distraídos enquanto me dedicava à flor que eu tentava chamar de minha. E tão distraidamente meus pés obedeceram que eu subi quatro degraus de uma charmosa soleira sem perceber. Só percebi quando meu corpo tocou desastradamente aquela, pra mim ainda, puta:

- Perdão! – assustada.

Ela não respondeu. Olhou-me esguia como quase nem se olha. Manteve a face voltada para algo que parecia uma procura, ou espera. Acelerei meus movimentos desencontrados para escapar àquela cena, mas a ingênua curiosidade me conteve:

- Você não está em uma vitrine...

Recebi um sorriso sem seu olhar. E por esse instante me dei conta que eu dentei meus olhos sobre ela com seu corpo desnudo, paradoxalmente vestido de puta. Não sei quanto tempo me demorei olhando e nem se ela se incomodava, mas a inércia da situação me impulsionou uma atitude. Estendi-lhe a mão que guardava a flor:

- Isso não serve para pagamento. – sorrio com desdém, de lado.

- Estava no chão. – minha voz eram cacos.

Silêncio.

- Não me pertence. – quebrei.

- Nem a mim.

- Pode pertencer se você aceitar. – os cacos se juntaram firmes.

Pela primeira vez ela me olhou, e eu olhei seus olhos em resposta. Dessa vez ambas sorriram, pelo olhar.
Ela me convidou para entrar. Eu disse que não podia pagar. Ela deu de ombros. Eu sorri com os lábios. Ela segurou minha mão. Eu senti a pele morna. Ela me puxou pra perto. Eu me ergui nos pés e beijei-lhe a face. Ela fechou olhos e respirou fundo. Eu me demorei no beijo, apertei-lhe a mão e me fui. Ela aceitou a flor, chorou e não trabalhou aquele dia.
Depois disso, pra mim, mesmo nos dias de trabalho, ela não era mais puta. Era mulher.