Nota: um esboço deste conto já foi postado aqui anteriormente com outro título. Volto a postá-lo a pedido dos que gostariam de lê-lo em função da menção honrosa ganha no Concurso Internacional de Contos de Araçatuba.
Era meu segundo dia na Holanda e,
sinceramente, já contava as horas para o dia acabar. Os passados em Paris foram
encantadores. Sei que esse encanto deveu-se ao fato de a cidade e eu não termos
nenhum compromisso entre nós. Mas, ao fim dos cinco dias, juntei-me a uma
excursão. Paguei essa parte da viagem em prestações de um ano e meio. “CONHEÇA
O MELHOR DA EUROPA EM 10 DIAS.” Não preciso nem dizer o quanto desesperador e
decepcionante é tentar atravessar uma parte do velho mundo que seja em um
espaço tão curto de tempo. Somos arrastados por caminhos que não escolhemos e,
na ânsia de vermos tudo, acabamos muito mais perdendo de vista. Mas, quando seu
desejo pelo universo é intenso, então ele se digna a compaixão. Não sei se é
uma regra, mas... Parto amanhã, e agora sem nenhuma decepção.
“Deus criou o mundo, mas a
Holanda foi criada pelos holandeses.” Desconheço o autor. Ouvi dizer que era
uma terra coberta por água, tomada pelo mar. Mas, os seres humanos que cá
vivem, decidiram viver aqui e assim o fizeram a todo o custo.
Prometeram-me flores. Vi poucas.
Tudo bem. A história me encantou. Dizem-se um povo livre. Acredito porque me
disseram e talvez o sejam por dizerem. Dar-me-ei ao luxo de contar uma história
que talvez seja verdade apenas porque a conto.
Foi-nos prometido conhecer os
frutos proibidos no “nosso mundo”. Fazia parte do itinerário, conheceríamos as
drogas e as putas de Amsterdan. As drogas que abrem o corpo para outras
sensações quase tão proibidas quanto. E as putas... bem, as putas, o mundo
inteiro sabe bem, mas que eu vi como nunca havia imaginado.
O caminho era longo. Várias
belezas se espalhavam por esse país encantadoramente estranho. Muita gente, o
que em geral não me agrada.Alguns passavam habitualmente, outros fingiam
encantos, ou se encantavam mesmo, não me preocupei em lhes observar a
autenticidade. Eu procurava flores. Prometeram que elas cresciam aos montes
naquela época do ano, belas e livres. Não sei se foi mentira ou ilusão alheia,
sei que me esforcei na procura.
Meu corpo já estava cansado. Se
eu resguardava alguma expectativa, ela com certeza me escorregara dos bolsos.
Já andava com os olhos baixos. E me observando, acredito que o universo teve
compaixão: encontrei a flor. Sim, em artigo definido, pois sei que era ela que
no fundo eu esperava encontrar entre milhares. As milhares não vieram, mas ela
foi fiel, jogada no asfalto cotidiano. Não sei de onde veio. Se caiu de um
cesto, se cresceu ali ou se despencou do céu. Só estava lá. Linda, viva,
vermelha, livre. Livre para crescer e ser onde tudo simplesmente passava. Mas,
assim como eu, com meus olhos baixos de cansaço, ela deixava escapar de si uma
tristeza involuntária, talvez por ser demasiadamente livre e, portanto,
solitária.
Tomei ma corajosa decisão: parei
no meio da rua apressada e colhi a flor de sua liberdade. Abraçamo-nos como
dois queridos reencontrados. Quando me dei conta, estava diante das drogas e
das putas. O Bairro Vermelho, onde o pecado merece respeito.
A rua era comprida, dividida por
um canal como é em toda a parte por aqui. Tudo muito amontoado: cores cheiros,
sons e até as vontades. Parecia que, ao mesmo tempo, tudo e todos buscavam a
liberdade esguia naquele asfalto cru. De minha parte, não me senti mais livre,
nem menos também.
As putas ficavam dispostas em
vitrines exibindo seu produto, à espera de um desejo que se desatasse de todo o
emaranhado e as viesse convidar. Havia poucas, quase nenhuma. Ainda era cedo
para aquele tipo de comércio. Vitrines eu vi aos montes, porém vazias, pedindo
aos meus olhos um significado. Eu poderia elaborar muitas comparações para
aquela situação peculiar aos olhos ingênuos e adestrados. Mulheres e vitrines.
Corpos e vitrines. O desejo podendo observar pelo vidro o desejado. Mas,
metaforicamente, é mais capitalismo do que minha poesia pode suportar. Fui
dando aos meus pés o consentimento para seguirem distraídos enquanto me
dedicava à flor. Nessas excursões quase nunca se para. Nem para ver. E tão
cegamente meus pés obedeceram que subi os degraus de uma charmosa soleira,
assim por acaso, por distração. Só percebi quando meu corpo tocou
desastrosamente aquela puta:
- Perdão! – num susto.
Ela não respondeu. Olhou-me
esguia como quase nem se olha. Manteve a face e o corpo voltados para algo que
parecia uma procura; uma espera. Acelerei meus movimentos desencontrados para
escapar àquela cena, mas a ingênua curiosidade me conteve e eu gaguejei meu
comentário tão desnecessário:
- Você não está em uma vitrine...
Não me passou pela cabeça a
possibilidade de ela não entender o meu inglês mal treinado. Recebi um sorriso
sem o seu olhar. E por um instante, dei conta de que eu deitava meus olhos
sobre ela no seu corpo desnudo paradoxalmente vestido de puta. Não sei quanto
tempo me demorei olhando e nem se ela se incomodava, mas a inércia da situação me
impulsionou uma atitude – desnecessária? Estendi-lhe a mão que guardava a flor:
- Isso não me paga. – sorriu com
desdém.
- Estava no chão. – minha voz
eram cacos, meu corpo se encolhia em submissão a algo que ela parecia possuir e
a tornava superior.
Silêncio.
- Não me pertence. – quebrei.
- Nem a mim.
- Pode pertencer se você aceitar.
– os cacos se juntaram firmes e o corpo tomou a coragem do desvendar.
Pela primeira vez, ela me olhou e
eu olhei seus olhos em resposta. Dessa vez sorrimos pelo olhar.
Ela me convidou para entrar. Eu
disse que não podia pagar. Ela deu de ombros. Eu sorri minha timidez com os
lábios. Ela segurou minha mão. Eu senti a pele morna na minha fria. Ela me
puxou para perto. Eu me ergui nos pés e beijei-lhe a face. Ela fechou os olhos
e respirou fundo. Tragou o ar feito uma droga, carregado do sentimento que
criamos. Eu me demorei no beijo, apertei-lhe a mão e me fui. Ela aceitou a
flor, é tudo o que sei, mas, quando penso, gosto de acreditar que também tenha
chorado e não trabalhado aquele dia.
Depois disso, para mim, mesmo nos
dias de trabalho, ela não era mais puta. Era mulher. A falta do vidro entre
nossos corpos permitiu que eu enxergasse nos olhos dela a vitrine de sua alma.
E tudo o que eu vi é segredo.