terça-feira, 3 de julho de 2012

Na espera

Ela tinha as pontas dos dedos negras. E eu com minha muita ingênua idade ficava me perguntando que tipo de coisas enegreciam os dedos de uma mulher jovem. Quis perguntar, mas nunca tive essa pureza da curiosidade sem malícia. Eu certamente a ofenderia com meu tom indiscreto.Imaginei-me criança, questionando minha mãe:- Por que aquela moça tem os dedos pretos?Dona Carmem certamente me apertaria forte o braço e sinalizaria um repreensivo silêncio. A dúvida me atormentaria durante toda a espera pelo ônibus, e eu nunca saberei o que me irritava mais a alma infantil, se não saber o porque uma moça bonita tinha as pontas dos dedos negras, ou aquela espera interminável na rodoviária. Mas não há remédio. A única resposta que eu teria de Dona Carmem é que "na vida há coisas que não podem ser questionadas". Mais tarde conclui que a solução para elas é o apertão no braço e o silêncio.- Plataforma quatro, passageiros com destino a: Birigui, Penápolis e Rio Preto. Favor comparecer ao embarque.Se dona Carmem não estava mais lá para me calar a indiscrição então por que me calei?Apanhei minha bagagem desapontada. A moça acendia seu cigarro com ar de importância. Minha mãe com certeza arriscaria um comentário repreensivo sobre esse hábito, mas eu me moldei mais em silêncio. Desejei que ela compartilhasse da minha viagem, mas ao sinal da saída do ônibus ela em se moveu. Parecia que morava ali. Do meu assento eu a observava, pela janela larga. Era bonita. Eu teria inveja se toda a minha atenção não estivesse na questão: por que dedos negros?Ela apagou o cigarro com um elegante desprezo. Enquanto o carro dava suas primeiras sacudidas, sem perder nenhum detalhe, meus olhos deram-me uma dica ao mistério. De dentro da bolsa saiu pelas suas mãos singulares um bloco grosso e uma caneta tinteiro. Sim, dessas que já não se usa mais. Como um ritual, destampou a caneta, limpou com as pontas dos dedos os excessos de tinta, folheou o bloco como se fosse a primeira vez, e no que deveria ser uma página em branco se pôs a escrever no momento em que eu já estava distante demais para ver com os olhos. "Deve ser escritora, dessas que não se acostumam com tecnologias".Senti-me feliz e aliviada naquele momento. Lembrei mais uma vez de dona Carmem e da primeira vez que manifestei um desejo sobre o futuro: "quero ser escritora mãe!". Não respondeu com uma só palavra, mas no seu olhar eu senti o aperto o braço: Silêncio!No final das contas fiz magistério e hoje sou esposa. Graças a Deus! Não suportaria ter as pontas dos dedos negras.