domingo, 22 de setembro de 2013

Coisas de Diário

Nota: um esboço deste conto já foi postado aqui anteriormente com outro título. Volto a postá-lo a pedido dos que gostariam de lê-lo em função da menção honrosa ganha no Concurso Internacional de Contos de Araçatuba.


Era meu segundo dia na Holanda e, sinceramente, já contava as horas para o dia acabar. Os passados em Paris foram encantadores. Sei que esse encanto deveu-se ao fato de a cidade e eu não termos nenhum compromisso entre nós. Mas, ao fim dos cinco dias, juntei-me a uma excursão. Paguei essa parte da viagem em prestações de um ano e meio. “CONHEÇA O MELHOR DA EUROPA EM 10 DIAS.” Não preciso nem dizer o quanto desesperador e decepcionante é tentar atravessar uma parte do velho mundo que seja em um espaço tão curto de tempo. Somos arrastados por caminhos que não escolhemos e, na ânsia de vermos tudo, acabamos muito mais perdendo de vista. Mas, quando seu desejo pelo universo é intenso, então ele se digna a compaixão. Não sei se é uma regra, mas... Parto amanhã, e agora sem nenhuma decepção.

“Deus criou o mundo, mas a Holanda foi criada pelos holandeses.” Desconheço o autor. Ouvi dizer que era uma terra coberta por água, tomada pelo mar. Mas, os seres humanos que cá vivem, decidiram viver aqui e assim o fizeram a todo o custo.

Prometeram-me flores. Vi poucas. Tudo bem. A história me encantou. Dizem-se um povo livre. Acredito porque me disseram e talvez o sejam por dizerem. Dar-me-ei ao luxo de contar uma história que talvez seja verdade apenas porque a conto.

Foi-nos prometido conhecer os frutos proibidos no “nosso mundo”. Fazia parte do itinerário, conheceríamos as drogas e as putas de Amsterdan. As drogas que abrem o corpo para outras sensações quase tão proibidas quanto. E as putas... bem, as putas, o mundo inteiro sabe bem, mas que eu vi como nunca havia imaginado.

O caminho era longo. Várias belezas se espalhavam por esse país encantadoramente estranho. Muita gente, o que em geral não me agrada.Alguns passavam habitualmente, outros fingiam encantos, ou se encantavam mesmo, não me preocupei em lhes observar a autenticidade. Eu procurava flores. Prometeram que elas cresciam aos montes naquela época do ano, belas e livres. Não sei se foi mentira ou ilusão alheia, sei que me esforcei na procura.
Meu corpo já estava cansado. Se eu resguardava alguma expectativa, ela com certeza me escorregara dos bolsos. Já andava com os olhos baixos. E me observando, acredito que o universo teve compaixão: encontrei a flor. Sim, em artigo definido, pois sei que era ela que no fundo eu esperava encontrar entre milhares. As milhares não vieram, mas ela foi fiel, jogada no asfalto cotidiano. Não sei de onde veio. Se caiu de um cesto, se cresceu ali ou se despencou do céu. Só estava lá. Linda, viva, vermelha, livre. Livre para crescer e ser onde tudo simplesmente passava. Mas, assim como eu, com meus olhos baixos de cansaço, ela deixava escapar de si uma tristeza involuntária, talvez por ser demasiadamente livre e, portanto, solitária.

Tomei ma corajosa decisão: parei no meio da rua apressada e colhi a flor de sua liberdade. Abraçamo-nos como dois queridos reencontrados. Quando me dei conta, estava diante das drogas e das putas. O Bairro Vermelho, onde o pecado merece respeito.

A rua era comprida, dividida por um canal como é em toda a parte por aqui. Tudo muito amontoado: cores cheiros, sons e até as vontades. Parecia que, ao mesmo tempo, tudo e todos buscavam a liberdade esguia naquele asfalto cru. De minha parte, não me senti mais livre, nem menos também.

As putas ficavam dispostas em vitrines exibindo seu produto, à espera de um desejo que se desatasse de todo o emaranhado e as viesse convidar. Havia poucas, quase nenhuma. Ainda era cedo para aquele tipo de comércio. Vitrines eu vi aos montes, porém vazias, pedindo aos meus olhos um significado. Eu poderia elaborar muitas comparações para aquela situação peculiar aos olhos ingênuos e adestrados. Mulheres e vitrines. Corpos e vitrines. O desejo podendo observar pelo vidro o desejado. Mas, metaforicamente, é mais capitalismo do que minha poesia pode suportar. Fui dando aos meus pés o consentimento para seguirem distraídos enquanto me dedicava à flor. Nessas excursões quase nunca se para. Nem para ver. E tão cegamente meus pés obedeceram que subi os degraus de uma charmosa soleira, assim por acaso, por distração. Só percebi quando meu corpo tocou desastrosamente aquela puta:

- Perdão! – num susto.

Ela não respondeu. Olhou-me esguia como quase nem se olha. Manteve a face e o corpo voltados para algo que parecia uma procura; uma espera. Acelerei meus movimentos desencontrados para escapar àquela cena, mas a ingênua curiosidade me conteve e eu gaguejei meu comentário tão desnecessário:

- Você não está em uma vitrine...

Não me passou pela cabeça a possibilidade de ela não entender o meu inglês mal treinado. Recebi um sorriso sem o seu olhar. E por um instante, dei conta de que eu deitava meus olhos sobre ela no seu corpo desnudo paradoxalmente vestido de puta. Não sei quanto tempo me demorei olhando e nem se ela se incomodava, mas a inércia da situação me impulsionou uma atitude – desnecessária? Estendi-lhe a mão que guardava a flor:

- Isso não me paga. – sorriu com desdém.

- Estava no chão. – minha voz eram cacos, meu corpo se encolhia em submissão a algo que ela parecia possuir e a tornava superior.

Silêncio.

- Não me pertence. – quebrei.

- Nem a mim.

- Pode pertencer se você aceitar. – os cacos se juntaram firmes e o corpo tomou a coragem do desvendar.

Pela primeira vez, ela me olhou e eu olhei seus olhos em resposta. Dessa vez sorrimos pelo olhar.

Ela me convidou para entrar. Eu disse que não podia pagar. Ela deu de ombros. Eu sorri minha timidez com os lábios. Ela segurou minha mão. Eu senti a pele morna na minha fria. Ela me puxou para perto. Eu me ergui nos pés e beijei-lhe a face. Ela fechou os olhos e respirou fundo. Tragou o ar feito uma droga, carregado do sentimento que criamos. Eu me demorei no beijo, apertei-lhe a mão e me fui. Ela aceitou a flor, é tudo o que sei, mas, quando penso, gosto de acreditar que também tenha chorado e não trabalhado aquele dia.

Depois disso, para mim, mesmo nos dias de trabalho, ela não era mais puta. Era mulher. A falta do vidro entre nossos corpos permitiu que eu enxergasse nos olhos dela a vitrine de sua alma. E tudo o que eu vi é segredo.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

O que se pode aprender com J.J Rousseau

Trecho da sétima caminhada do livro "Os Devaneios do caminhante solitário":



" Em todos os males que nos acontecem, olhamos mais a intenção que o efeito. Uma telha que cai de um telhado pode nos ferir mias, mas não nos aflige tanto quanto uma pedra lançada propositalmente por uma mão malévola. O golpe erra o alvo algumas vezes  mas a intenção nunca o erra. A dor física é a que menos se sente nos ataques da sorte e quando os infortunados não sabem a quem culpar por suas infelicidades, culpam o destino, que personificam e ao qual atribuem olhos e uma inteligência para atormentá-los propositalmente. É assim que um jogador exasperado por suas perdas se enfurece sem saber contra quem. Imagina um destino que se encarniça deliberadamente contra ele, para atormentá-lo e encontrando um alimento para sua cólera, exita-se e inflama-se contra o inimigo que criou para si mesmo. O homem sábio,que em todas as suas infelicidades não vê se não o golpes da fatalidade cega, não tem estas agitações insensatas, grita na sua dor, mas sem veemência, sem cólera, do mal que o atinge sente apenas o ataque material e os golpes que recebe em vão ferem sua pessoa, nenhum chega a seu coração.
É muito ter chegado até este ponto mas não é tudo se nele nos detivermos. É bom ter cortado mal mas isto não significa ter deixado a raiz. Pois essa raiz não se encontra nos seres que nos são estranhos, ela está em nós mesmos e é aí que é preciso trabalhar para arrancá-la c
ompletamente. "

quinta-feira, 7 de março de 2013

Maldição é ter a democracia suja por um representante desse nível.

A tristeza, o inconformismo e o choro de representantes dos movimentos sociais e de religiões afro-brasileiras com a eleição do pastor Marco Feliciano para a Presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. 


(Foto: Zeca Ribeiro)

Muitas postagens estão sendo feitas sobre as opiniões homofóbicas do nosso atual - espero que não efetivo - presidente da comissão de direitos humanos. Mas, para mim, muito mais sérios foram os pronunciamentos dele, sejam recentes ou não - porque ele ainda não se redimiu e nem se deu ao trabalho de explica-las -, sobre o continente e o povo africano. Ele os trata como amaldiçoados, tentando justificar as dificuldades enfrentadas pelo povo africano em cada canto daquele imenso continente e também fora dele. Povo que não bastando ser atacado em sua própria terra foi levado dela para viver como ser inferior em outros cantos do mundo. E que cor eram as mãos dos que os carregaram pra fora da África e banharam o continente com o próprio sangue negro? Poderiam ser ROXAS aquelas mãos, mas com toda a certeza não eram mãos divinas, essas mãos também sangraram. É o homem como lobo do homem, nem mais, nem menos. 
E é muito feio - não achei expressão melhor - da parte de qualquer religioso usar o nome do seu deus para justificar essa involução da humanidade, como se nós não tivéssemos uma dívida histórica, ao meu ver impagável, com essa nação. 
Uma Comissão de Direitos Humanos visa o alcance de direitos historicamente negados as minorias (no sentido científico da palavra), não a justificação da violação desses direitos. Portanto, me perdoem se eu, Brasileira nata, residente em um país regado pelo suor negro, branco, pardo, mulato, amarelo, espero do meu presidente da Comissão Nacional de Direitos humanos uma posição e um histórico completamente diferente do Pr. Marco Feliciano.
Mas, se ele insistir em maldição proponho a união de todos os "sacerdotes" das religiões afro-brasileiras para fazermos uma grande "macumba" e tirarmos esse cara do banco mais alto da NOSSA Comissão!




" ... e de tudo o que plantaram nada lhes restou... nem da terra, nem dos frutos. Apenas a liberdade! "

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Primeiro Poema Metrificado

Se você aceitasse minha mão
Se esperássemos filhos
Se viesse menina em canção
Se chorasse vida em seu parto
Se viesse Deus sabe donde
Pra dormir em nosso quarto
Se a ela encontrássemos
Perdida de direção
Se você não fizesse questão.

S'enlaçadas nossas mãos
Coubéssemos nós três no retrato
Se fossemos para sempre,
Que nos fosse por um triz,
A ser feliz condenados
Ela poderia, meu amor,
Chamar-se Beatriz?


* Uma anedota sobre o poema *

A ideia veio quando eu ouvi a música Beatriz no álbum d' O Grande Circo Místico. Eu já conhecia a música, talvez como a maioria hoje, pela voz da cantora Ana Carolina. Mas, dessa forma ela fica solta em um álbum que não lhe pertence.
Beatriz foi composta por Chico Buarque e Edu Lobo para este balé chamado O Grande Circo Místico. Sim, exatamente isso: não existe só o Lago dos Cisnes. Enfim, ouvindo a música dentro do seu álbum, que alias é fantástico, ela me encantou como realmente deveria me encantar. E eu decidi, toda encantada, que minha filha se chamaria Beatriz, quando ela viesse, se ela viesse. Então fiquei me imaginando tentando convencer  "my partner" a chamarmos nossa filha assim. Aí saiu o poema.
Mas, quis fazer direitinho dessa vez, metrificado, pelo menos uma tentativa. Enfim, fiquei umas boas horas pra tentar calcular os versos e colocar as sílabas no lugar. Enquanto isso eu ouvia , pela primeira vez, o álbum Antônio Brasileiro do nosso mestre Tom Jobim. Na metade do meu trabalho uma das músicas do álbum me chamou atenção e foi enquanto ela tocava que eu terminei o poema. Voltei a música e me dei conta que ela foi feita por Tom para sua filha, e a menina cantava com ele: O Samba de Maria Luíza. Postei no meu face na hora o sambinha que é fofo por demais. Depois fiquei pensando que talvez a poesia tenha um carma ou sei lá o que. Achei loucura eu estar escrevendo um poema do nome da minha futura filha (se ela vier) enquanto Tom, do nada, em um álbum que eu esperava baixar a dois dias e ainda não sabia o que tinha dentro, cantava pra mim um samba com o nome da sua filha. Acho que me senti em harmonia com o maestro, tenho esse direito, não tenho?! (risos)

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Na outra espera


[ VIDE Na espera]

“A vontade é de pegar qualquer um desses ônibus que tiveram o privilégio de sair no horário. Esse! Rio Preto? Não, também não é pra tanto.”

Duas horas de espera para quem toma tarja preta em função de ansiedade é realmente uma tortura. Era o segundo maço que ela abria naquela semana. Falando assim a um fumante assíduo parece até piada, mas, para ela que usava o hábito apenas como charme boêmio – imprescindível para quem se julga escritor – um maço não pode atrever-se a durar menos de uma semana. Até porque o preço do charme não era pago apenas com sua pouca saúde.

“Por que essa agonia em querer estar sempre indo? Afinal, não me importo pra onde?” Deu um trago profundo. Olhou para o ônibus que estava saindo, uma mulher com os ombros caídos, olhar de quem nada procura, fitava-a com uma sutil curiosidade disfarçada. A escritora esboçou um sorriso interior, adorava poder oferecer seu charme a olhos curiosos, tudo parecia bem menos inútil.

“Por um segundo quase não importou mesmo!” Continuou seu pensamento como se ele também pudesse ser observado pela moça triste que partia lentamente no seu ônibus pontual. E o ritual foi automático: abrir a bolsa em busca do bloquinho das inspirações fora de hora. O engraçado é que abrir o bloquinho já era em si um grande obstáculo. Ela sempre atava os olhos e o pensamento nas inspirações passadas desenhadas nas primeiras páginas. Era um vício muito mais autêntico que o cigarro. Quantas vezes não se esvaneceu o pensamento que fê-la abrir o bloquinho antes que chegasse na próxima página em branco...!

“Eis: o túmulo dos meus pensamentos, é aqui que os deito para não mais me atormentarem. Ficam aqui nessas folhas outrora brancas para que, por vezes, possa contemplá-los, mas, nunca mais vivê-los em mim.” Era a última inscrição. “Quem dera fosse verdade. Me livraria dos meus demônios todos. Isso sim é uma grande mentira!” Pensou em voz quase alta. “Roberto – o psiquiatra – achou a teoria um progresso emocional da minha parte: tão charlatão quanto eu!”

Enfim a página em branco. Foi em busca da caneta dessa vez. Uma caneta tinteiro! Em pleno século XXI, só quem rende a própria saúde em nome de uma imagem melhor de si mesmo, abriria mão da praticidade que as canetas esferográficas oferecem para, em meio a vida moderna, sacar da bolsa uma imagem tão deslocada no tempo: uma caneta tinteiro. Combinava com ela, isso era um fato. Ela acreditava que isso poderia dar mais valor as palavras. E talvez, porque ela acreditasse tanto, assim realmente o fosse. Abriu a caneta e como sempre, talvez culpa da má qualidade do objeto, teve que limpar o excesso de tinta do bico. “Ainda bem que não secou, senão não daria para escrever agora.” Esfregou as pontas dos dedos manchados no banco para não sujar as páginas em branco. Mas, antes de escrever qualquer palavra, contemplou seus dedos enegrecidos. Olhava imaginando o quanto dela e de seu ofício havia aquela imagem. “E quantos enxergam isso?”

Ergueu de súbito os olhos à janela da mulher dos ombros baixos, mas, o ônibus já havia partido, talvez há muito tempo. Que sentimento era aquele? “De qualquer forma, que seja!” Ela já havia perdido, mais uma vez, a inspiração que a fizeram abrir o bloquinho. Guardou tudo na bolsa e pegou o cigarro dentro na cigarreira de alumínio. Hesitou. “Já estou farta dessa imagem.” Fechou a bolsa com tudo seguro lá dentro, suas coisas ultrapassadas pelo tempo. Cruzou as pernas e pousou os dedos negros no joelho esperando com sua ansiedade invisível seu ônibus chegar.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Primeiro conceito de 2013

Adolescente, adulto, criança, jovem, velho: até o tempo tem seus rótulos.
E eu que não tenho idade pra nada, fico assim: indefinida.
Madura demais pra certas loucuras;
Inocente demais pra acreditar só no possível;
Jovem demais pra aceitar a rotina;
Velha demais pra apostar em revoluções;
Forte demais pra se entregar a morte assim tão cedo;
Frágil demais pra conter, por um segundo que for, as lágrimas eternas de quem há muito se perdeu.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Sobre o que é tolo

Gosto de escrever pelo prazer sutil de deslizar a caneta. Raspar o lápis no papel fazendo barulho de coisa séria. Um prazer tão próprio que às vezes tenho a gana de escrever de olhos fechados. Então tudo é bagunça por dentro e por fora.
E quando não se tem, nem se sabe o que escrever, mas brota esse desejo de brincar de escritor ... ah! É mais angustiante que noite de domingo depois da missa.
É uma vontade que deveria ter resolução própria, como a falta de ar, que se o ar falta, o corpo dana a respirar com mais força sem que se possa controlar.
O desejo de roçar a caneta no papel não se satisfaz se o fizermos sem direção. O atrito deve desenhar palavras e as palavras devem desenhar algo com a ousadia de ser dentro e fora do papel.
Vontade ingrata, que por mais satisfeita hora ou outra volta, como fome e sede que nem a morte alivia. Os crentes dos espíritos alimentam e embebedam seus mortos conforme a vossa vontade.
No pé do meu túmulo deixem sempre um papel e uma caneta. É o suficiente.